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Cresce Brasil

A senadora Marina Silva posiciona bruscamente as duas mãos em paralelo, como se quisesse enquadrar um pedaço do ar à sua frente, no gesto clássico dos professores que querem atrair a atenção sobre o que vão dizer: "Quando o Brasil vende cada quilo de grão, precisa pôr na cabeça que está indo aí uma quantidade enorme de água", começa.

"Compram da gente porque temos um insumo chamado água que não é computado no custo do produto, e se esse grão ou esse frango fossem produzidos em Israel ou na Europa, teriam um custo enorme", prossegue. Sobe o tom: "Somos exportadores de água. E vamos destruir nossas florestas, nossas matas ciliares? É irracional".

Ela não é mais ministra do Meio Ambiente há quase três meses, mas seu discurso ainda traz verbos no presente. A senadora é muito mais sorridente que a ministra e isso era visível semana passada, durante seu segundo retorno ao "fio-terra" - a terra natal, o Acre -, depois de ter deixado a pasta. O primeiro havia sido em junho, na convenção do PT, para apoiar Raimundo Angelim, candidato à reeleição na prefeitura de Rio Branco.

Dessa vez, o partido se deslocava ao seu gabinete, uma casa no Jardim Nazle, em Rio Branco. O exercício de escutar as "bases" tinha algo de ritual, de beija-mão. Foi o dia todo de conversas com antigos companheiros da cúpula do PT acreano (do senador Tião Viana ao presidente regional do partido, do prefeito a assessores do governador Binho Marques), num sinal evidente de que os laços continuam estreitos com os antigos companheiros.

Mas a senadora que queria ser freira, virou professora e acabou ministra, desconversa quando o assunto é 2010: "A política para mim não é encarada como profissão ou meio de vida", diz, lembrando que quem "colocou 700 pessoas na cadeia" não estava pensando em popularidade.

O olhar político da ex-ministra passa invariavelmente pela floresta. É lá que ela viveu, foi lá que ela combateu ao lado de "Chico", o líder seringueiro Chico Mendes, assassinado há 20 anos. Ela pensa na região com pragmatismo: "O plano de combate ao desmatamento não pode se esfacelar, senão não há super-herói que segure", recomenda ao sucessor Carlos Minc.

O berço amazônico inspira metáforas: "Eu dizia à minha equipe: Não vamos fazer a política do queixada, que marca um rumo e não sai dele. Tem que ser flexível", lembra, citando o porco-do-mato que anda em bando pela Amazônia. "Queixadas não têm estratégia de recuo. Se tiver fogo no seu caminho, atravessam mesmo assim."

Sua agenda no Senado tem mais de 200 convites para palestras. Toda semana há pelo menos três pedidos de entrevista (principalmente da imprensa internacional). Já são 12 convites para eventos no exterior - um Congresso sobre Mudanças Climáticas, em Davos, uma palestra no departamento de Estudos Latino-americanos de Harvard ou a gravação de uma fala para comemorar o aniversário de 500 anos da Real Academia de Geografia de Londres, num projeto que quer registrar o discurso das pessoas mais relevantes do planeta.

Ela pretende fazer de sua ação no Senado a extensão parlamentar do que pensava no Executivo. Não defende desmatamento zero, quer os ilegais fora do páreo e diz que a economia da floresta tem que ser diversificada, com manejo florestal, castanha e borracha e até pecuária, mas mais eficiente e menos predatória. Diz que o Brasil tem que fazer uma aposta séria no desenvolvimento sustentável, vender produtos com valores ambientais e equidade social.

"Os países exportaram produtos com marcas, nós vamos exportar produtos com valores. As pessoas têm que preferir o nosso álcool, porque ele respeita a segurança alimentar, a questão trabalhista, o ambiente. Vão querer o nosso grão, porque ele respeita a floresta."

Marina acha que o agronegócio poderia viver o melhor dos mundos se o setor "depusesse as motosserras", continua pouco flexível à energia nuclear e diz que quem quiser inviabilizar os biocombustíveis brasileiros "se meta a dizer que vão produzir álcool na Amazônia e aí ninguém vai comprar".

A seguir, trechos da entrevista em que ela começa falando de antas e termina lembrando dos bagres.

- Impressionante a visitação ao Parque Chico Mendes com 6 mil pessoas nos fins de semana...

O parque foi feito aqui em Rio Branco, na época do Jorge [Viana, o ex-governador], para mostrar um fragmento de floresta nativa. Virou um espaço de resgate da auto-estima das populações tradicionais num Estado onde se pensava que ser desenvolvido era transformar tudo em capim e virar fazendeiro. Conheço de ter vivido na própria pele: ser seringueiro era ser feio, burro, brega. Mas agora é só escutar as famílias que vêm ao parque, com os pais e os avós contando aos jovens o que é cotia, paca, tatu. Explicam que a anta, o maior mamífero da Amazônia, não ataca ninguém e é muito arisca. Só de sentir o cheiro de alguém, sai em disparada. A onça fica na árvore, esperando a anta passar, e aí pula em cima mordendo o topete que ela tem. No mato tem uma planta com raízes aéreas enormes, e a primeira coisa que a anta faz quando a onça pula nela é passar no meio daquelas raízes. Arrancam o topete, mas a onça vai embora. Acontecia muito de a gente ver antas sem topete.

- Como foi sua volta ao Senado? Como vê 2010?

Dizem que liderança tem que ser planejada. Mas a única coisa que eu programei acabou não dando certo, eu queria ser freira. Nunca imaginei que seria política. Sou professora, tenho feito um esforço enorme para continuar me atualizando, porque sei que um dia vou voltar a dar aula e não quero chegar mais burra do que saí. Concluí em 2007 um curso de teoria psicanalítica na UNB [Universidade de Brasília] e estou terminando o de psicopedagogia. Fui alfabetizada aos 16, sonho em trabalhar com jovens e adultos. Acho que política tem que ser cada vez mais um lugar de lideranças multicêntricas em que tem que ter revezamento.

- Qual o impacto das estradas que vão cortar o Acre? A ligação para o Pacífico, por exemplo?

Temos de falar da questão de infra-estrutura da Amazônia de um modo geral. Uma coisa é a estrada feita sem governança ambiental, outra é com. É importante ter projetos de infra-estrutura na Amazônia? Claro. Tem 24 milhões de pessoas vivendo aqui, isso é 61% do nosso território e as pessoas querem estar integradas ao país. Mas qualquer projeto de infra-estrutura na Amazônia tem que ser balizado pelo ordenamento territorial e fundiário, inclusão social, infra-estrutura para o desenvolvimento sustentável e pesquisa com inovação tecnológica. Fizemos um ensaio no ato do licenciamento da BR-163, que liga Mato Grosso ao Pará. Se a estrada fosse feita da forma como estava quando chegamos, sem nenhum cuidado, seria um desastre. Só o anúncio dela aumentou o desmatamento em 500%. Encarei uma reunião com prefeitos lá no Mato Grosso, achei que iam me linchar. A BR-163 é um começo. Para servir de paradigma, se for implementada.

- Como vê a pecuária entrando nas reservas extrativistas?

Com muita preocupação. Quem é extrativista tem que saber que não pode virar pecuarista. Quando entrei no ministério, eram 5 milhões de hectares de unidades de conservação de reservas extrativistas e 10 milhões quando saí. O orçamento para as populações tradicionais era R$ 800 mil e chegou a R$ 72 milhões quando saí. Criamos o Instituto Chico Mendes para que as comunidades possam ter qualidade de vida lá dentro. Batalhei para que as reservas, que hoje vivem a introdução da pecuária, tenham opções. É possível ter qualidade de vida fazendo consórcio do uso da castanha, da borracha, do manejo comunitário, tendo horta de subsistência, uma vaca para dar leite ao filho. Mas não pode virar pecuarista.

- É possível, mesmo, manejar madeira na Amazônia?

Claro. O fundamental é combater o ilegal, que não gera emprego, não paga direito trabalhista, para que o empreendedor com tecnologia possa se instalar. Mas não dá para todo mundo virar manejador. Na Amazônia não tem espaço para processos homogêneos. Tem que ter uma economia diversificada, com madeira, produção de grãos, pecuária. Para que ela continue sendo Amazônia, diversa como é. Temos aqui diversidade biológica, social, cultural. Por que é que vamos ter uma mesmice econômica?

- Há espaço para pecuária?

Claro. A Embrapa tem tecnologia que possibilita sair de ter uma cabeça por hectare e chegar a 2,5. Triplica o rebanho, que já é enorme, sem derrubar nada. Para isso precisa ir fechando as porteiras da ilegalidade, fazer o manejo de pastagem e intensificar a produção. As pessoas usam uma área enorme por oito anos, aí ela vai dando praga, pegam outra área enorme de floresta e usam por outros oito anos. Tocam fogo, fica aquela camadinha de nutrientes que dá uma sobrevida. É a coisa mais estúpida que se pode imaginar. Usam a tecnologia dos índios, que é para uma roça deste tamanhinho, para serem os maiores produtores de grãos e de carne do mundo? É irracional.

- Como vê o projeto que os ambientalistas chamam de "Meia Amazônia", do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA)?

Isso aí é uma batalha. É um projeto complicado que quer diminuir a reserva legal na Amazônia. Acho que não tem espaço nenhum para essa discussão nesse contexto de crescimento de desmatamento. Tem que ter uma visão estratégica para a Amazônia, fazer zoneamento ecológico-econômico e ver em quais áreas se pode chegar a 50% e quais têm que ficar 100% preservadas.

- O ministro da Agricultura Reinhold Stephanes falou em permitir cana em savanas de Roraima, citando usinas já existentes no Pará e no Acre. O que pensa disso?

Sou contra a produção de álcool na Amazônia. A região tem uns cinco projetos estabelecidos na década de 70/80 que eu defendo que sejam projetos senis.

- Projetos senis?

Que não tenham expansão em hipótese alguma. Será o pior dos mundos criar uma expectativa de produção de álcool na Amazônia. Quem quiser inviabilizar o biocombustível no Brasil se meta a dizer que vai produzir álcool ali. É tudo o que as pessoas vão querer pra dizer que não vão comprar, porque está destruindo a floresta. E não significa que, "ah, então não pode na Amazônia e pode no cerrado?" Não é assim. E savanas são campos naturais, e não deixam de ser também na Amazônia.

- E os biocombustíveis?

Acho que o biocombustível tem que ter sustentabilidade social e ambiental para que a gente possa certificar esta produção. O Brasil tem uma grande oportunidade de, nos próximos 10 ou 15 anos, fornecer geração de energia com a produção de álcool e outras fontes que a gente possa ter. Estamos 30 anos na frente. O Brasil pode dar o termo de referência de como vai se produzir biocombustível no mundo. Mas tem que saber que é xis por cento que vamos produzir, com qualidade, e não mais. E saber, também, que novas tecnologias vão surgir. Imagine se vão deixar que os pobres fiquem plantando energia com enxada e facão.

- Xapuri guarda hoje o legado de Chico Mendes?

Xapuri guarda as contradições, ainda e sem sombra de dúvida, da época em que o Chico era vivo, e que não conseguiu se eleger sequer vereador da cidade, exatamente porque confrontava interesses. Os processos continuam em disputa, do mesmo jeito. Mas precisa ver que a forma da economia tradicional predatória tem 300 anos de experimento no Brasil e as experiências inovadoras têm muito pouco tempo. Quantos altos e baixos teve e tem a pecuária e a agricultura no Brasil, que precisa de perdão de dívida, de um monte de coisas? Quantos altos e baixos teve a indústria brasileira para se tornar o que é hoje? Esta nova economia, que nós chamamos de economia da floresta, nem conta com ferramentas e estrutura e as pessoas cobram resultado como se tivesse 300 anos. Bem, e acho que o legado do Chico ficou tão grande que não cabe em Xapuri. Hoje ele pode estar até melhor cuidado em alguma experiência positiva em Belém, em Manaus, em alguma reserva extrativista marinha, em alguma empresa de papel e celulose que está criando parques para manter floresta nativa.

- Como o agronegócio pode se modernizar?

Continuo achando que o setor deveria fazer uma automoratória, um movimento de depor as motosserras. O agronegócio não vai se acabar se der uma parada para fazer uma arrumação. Porque este é o melhor dos mundos.

- O que quer dizer?

Tem que ter pensamento estratégico. É possível fazer diferente, não tenho dúvida. O Brasil é um grande produtor de grãos porque tem terras em abundância, energia, solo e muita água. As pessoas compram da gente porque temos um insumo chamado água que não é computado no custo do produto, porque se esse grão e esse frango fossem produzidos em Israel ou na Europa, teriam um custo enorme. Mas como temos em abundância, somos exportadores de água. Para produzir 1 quilo de frango leva 2 mil litros de água, para produzir 1 quilo de grão vai mil litros de água. Quando se vende cada quilo de grão, põe na cabeça que está indo ai uma quantidade enorme de água. E vamos destruir as florestas e matas ciliares e acabar com a nossa água? O Brasil tem que fazer uma aposta no desenvolvimento sustentável. Fizemos uma aposta na industrialização, estava correto, somos o país melhor posicionado na América Latina por causa disso. Agora vamos fazer jus à potência ambiental que somos. Este século vai ser o século da resposta de como continuar crescendo e desenvolvendo e protegendo os ativos ambientais. Os países exportaram produtos com marcas, nós vamos exportar produtos com valores. As pessoas têm que preferir o nosso álcool porque ele respeita a segurança alimentar, a questão trabalhista, o ambiente. As pessoas vão querer o nosso grão porque ele respeita a floresta. Nosso produto tem que ser top de linha porque o mercado consciente se amplia cada vez mais. Acho que é possível viabilizar novos paradigmas de desenvolvimento. A dificuldade é que as pessoas entendem o "se" como um "não".

- Como assim?

Querem fazer as coisas sem nenhum tipo de condicionante. Isso vai nos levar para um buraco sem saída. Tem uma pesquisa aqui do Inpe que diz que a Amazônia produz 26% de toda a água que é lançada nos oceanos do planeta. E que se a floresta for destruída, vamos ter problemas de seca nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste do país. Alguém consegue imaginar o que é ter o semi-árido em um Estado populoso como São Paulo?

- Mas o desenvolvimento é mais rápido que o sustentável...

Temos que mudar nossa visão de desenvolvimento. Se há danos e custos que não são mensurados, então não é desenvolvimento. Hoje sabemos que é um equívoco continuar poluindo um rio como o Tietê e se chamava aquilo de desenvolvimento. Desenvolvimento pressupõe cuidar dos ativos ambientais, pressupõe equidade social. Isso não acontece da noite para o dia. Não se pode fazer as coisas pensando nas próximas eleições, é nas próximas gerações. Tem que viabilizar-se a dimensão da sustentabilidade política. As pessoas achavam "então, não vai fazer as usinas do Madeira por causa de bagre?" E olha o que aconteceu: a gente tem os bagres e tem o Madeira, não é? Só uma cabeça de bagre acha que o pirarucu, maior do que nós, não é um peixe importante. O Brasil precisa de uma visão de elite, no bom sentido, que seja capaz de ter o melhor da ciência e do saber das comunidades.

(Daniela Chiaretti, Valor Econômico, 8 de agosto)

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