As políticas de ações afirmativas adotadas até agora por universidades públicas e pelo governo federal, por meio do Prouni, tiveram pouco impacto sobre a participação dos pretos e pardos no ensino superior.
Dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) mostram que, de 2002, quando as universidades começaram a instituir programas de cotas, a 2007, a participação de pretos e pardos no ensino superior público variou 1,8 ponto percentual -passou de 36,4% dos estudantes de graduação do setor para 38,2%. De 2001 a 2002, a variação foi de 2,8 pontos percentuais.
Pretos e pardos são nomenclaturas usadas pelo IBGE para a classificação de raça/cor, a partir da autodeclaração dos entrevistados.
Na rede particular, a presença do grupo passa de 26,2% para 29,5% de 2004 a 2007. A principal ação afirmativa no setor é o Prouni, que desde 2005 concede bolsas a estudantes carentes de escola pública na proporção igual à de pretos, pardos e indígenas de cada Estado.
O baixo impacto das políticas de ação afirmativa adotadas até agora pode ser explicado pelo fato de que a maior parte dos alunos não é afetada por elas.
No Prouni, os 197 mil pretos e pardos que entraram pelo programa desde sua criação correspondem a 45% dos bolsistas. Considerando os que entraram em 2006, porém, o ingresso representou apenas 1% do total de matrículas no ensino superior.
O impacto de cotas em universidades públicas também é restrito considerando-se que três quartos dos estudantes estão em instituições privadas.
Desde 2002, segundo estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), 33 universidades públicas, de ao menos 250, passaram a adotar algum tipo de cota racial.
O projeto de lei que o governo quer aprovar no Congresso prevê que 50% das vagas nas federais sejam reservadas a alunos de escolas públicas, e que esse percentual seja dividido de acordo com a proporção de pretos, pardos e indígenas de cada Estado.
Mesmo se aprovada, porém, a lei terá reflexo pequeno sobre o quadro geral, embora de fato aumentem a presença de pretos e pardos nas instituições federais em que as cotas forem instituídas.
Segundo o mais recente censo do ensino superior produzido pelo Inep, com dados de 2006, as federais respondiam naquele ano por 12,4% das matrículas em todos os cursos de graduação do país.
Caso as vagas para pretos e pardos correspondessem à sua representação na população brasileira -ou seja, 49,8%-, haveria uma reserva correspondente a 3,1% das matrículas no ensino superior.
"Há todo um engodo em torno desse assunto [lei que cria cotas]", diz José Luiz Petrucelli, pesquisador do IBGE, favorável às cotas. "Mesmo se essa lei tivesse sido aprovada e estivesse sendo cumprida, ela não tem um efeito prático muito importante. Tem um efeito simbólico muito importante, por isso tanta polêmica."
Os números acendem no movimento negro uma reivindicação de cotas em todas as universidades, públicas e privadas.
Segundo frei David, da ONG Educafro, essa reivindicação é planejada para daqui a cerca de três anos, já que, na atual lista de prioridades, vêm antes a aprovação do projeto de lei pelo Senado, a criação de bolsas para os alunos cotistas conseguirem se manter nos cursos e o monitoramento do desempenho acadêmico deles, para, segundo afirma, divulgar os benefícios da política para a população como um todo. A idéia não deve encontrar apoio no Ministério da Educação.
Crescimento
Mesmo com baixo impacto de ações afirmativas, a presença dos pretos e pardos no ensino superior, contando tanto o público como o particular, tem uma trajetória crescente na última década. Em 1998, pretos e pardos eram 18% dos estudantes de graduação. Em 2007, o número já era de 31,5%.
Para Simon Schwartzman, do Iets (Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade), a principal razão para o crescimento é o aumento de matrículas, que foi de 187% na última década.
Isso aconteceu no ensino médio. A participação dos pretos e pardos nessa etapa passou de 42% para 50,5%, aumentando o número de pessoas aptas a cursar o ensino superior.
A qualidade da educação é um fator apontado para melhorar o acesso à universidade pela população mais pobre -e, conseqüentemente, de mais pretos e pardos, geralmente associados a essa faixa econômica.
Jorge Abrahão, do Ipea, diz que, aliadas à expansão das vagas nas universidades federais que vem ocorrendo sob o governo Lula, as ações afirmativas poderão produzir um impacto maior do que o de hoje.
Para gêmeos da UnB, sistema é uma "furada"
René de Souza, 32, negro, tentou entrar na UnB por quatro anos. "Por ter feito o ensino médio em escola pública, eu tenho o direito de fazer escola pública", diz, ao justificar o fato de somente no ano passado ter se candidatado a ingressar em uma universidade particular por meio do Prouni.
Mas também pelo programa do governo federal ele não conseguiu passar, porque, para entrar nas universidades privadas que escolheu -instituições prestigiadas de Brasília-, precisaria ter tido uma nota maior do que a que obteve no Enem.
René defende o sistema de cotas, diferentemente dos irmãos gêmeos Alan e Alex Teixeira da Cunha, 19. No ano passado, eles protagonizaram uma polêmica quando apenas um deles foi considerado negro pela UnB, que depois reviu sua decisão.
Alan, que, como seu irmão, fez escola particular, hoje estuda educação física na universidade. Diz que tirou a melhor nota entre os cotistas do curso e que seria aprovado de qualquer maneira. "Essa história mostrou que é uma furada."
Governo diz que projeto de cotas para as federais pode ajudar a mudar o quadro
O governo reconhece o fosso entre negros e brancos no ensino superior, mas está cumprindo a sua parte com o Prouni e com o envio, ao Congresso, de projeto de lei que institui reserva de vagas para negros e estudantes de escola pública nas universidades federais, diz André Lázaro, secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do MEC.
"O governo encaminhou o projeto de lei em 2004. Se ele tivesse sido aprovado, o cenário seria mais favorável", diz. Sobre o Prouni, afirma que o programa "não reduziu brutalmente a distância [entre brancos e negros], mas brecou". O projeto sobre cotas nas federais foi aprovado na Câmara e agora deve ser apreciado no Senado antes da sanção presidencial.
Lázaro defende que, para melhorar o quadro, é preciso aumentar a qualidade do ensino público, mas diz ser essencial a existência das cotas.
"Em todas as faixas etárias, a diferença entre brancos e negros no ensino superior vem caindo de modo bem expressivo, mas essa queda será insuficiente se a gente não conseguir estimulá-la, por exemplo, com a reserva de vagas", diz.
Lázaro também ressalta que as ações afirmativas podem não ter tido impacto estatístico sobre o quadro geral, mas foram importantes para os indivíduos que, de outra maneira, não teriam acesso ao ensino superior. Desde 2005, 197 mil negros entraram no ensino superior pelo Prouni. E, segundo estudo do Ipea, cerca de 58 mil entraram por cotas nas universidades públicas que adotaram o sistema, considerando que todas as vagas tenham sido ocupadas.
Em relação à reivindicação de cotas em todas as universidades, inclusive as particulares, defendida por frei David, da ONG Educafro, o secretário se mostra reticente. "O ministério vê com muito respeito a luta do frei David, mas não tenho clareza se esse instrumento é o melhor. O modo como o MEC se relaciona com o setor privado é regulatório, mas tem que ser construído em parceria."
Para o ministro Edson Santos, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República, o problema também está na ausência de uma lei que determine a adoção da reserva de vagas em todas as universidades públicas.
Ao criticar os que atacam as cotas por considerar que não se aplicam a uma sociedade miscigenada, ele aponta que as cotas em universidades irão aumentar a presença de negros nos cursos mais elitizados. "Quero desafiá-los [os críticos] a mostrar essa miscigenação em medicina, engenharia, odontologia, cursos que exigem formação integral. Se eles provarem isso, ganham esse debate."
(Folha de SP, 26/12)